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Carta para longe

 

Caro Henrique:

Já lá vão mais de cinquenta anos que te vi partir desta tua e nossa terra.

Estávamos na terceira classe e a professora Ana foi apanhada de surpresa quando tua mãe foi à escola comunicar-lhe que a tua família ia embarcar para a América.   Ficámos todos muito tristes, como se perdêssemos uma pessoa de família.

Estávamos em dezembro e o Natal era dali a dias. Nessa altura, chovia muito e o mar embatia, ferozmente, contra o Castelo e, na Lagoa, as lanchas da baleia rolavam que nem os nossos pequenos barquinhos de madeira.

Quando fazia trovões, minha mãe, para nos sossegar, dizia que era São José a fazer brinquedos. Na nossa inocência  acreditávamos. O certo é que os brinquedos do Menino Jesus nunca chegaram, fosse porque não havia para todos, fosse porque nos portávamos mal, fosse porque os nossos pais eram pobres.

Diziam que “Deus não castiga nem com pau nem com pedra”, por isso toda gente temia a ira divina, pregada do púlpito abaixo, exemplificada nos ciclones, nas mortes e nas tragédias que atingiam pessoas mais velhas, nossas conhecidas. O certo é que os enchentes de mar destruíam lanchas, o mar saltava o muro do campo de futebol atirando pedras, lixo e até peixe, e ficava tudo inundado e destruído...

A gente olhava pr'àquilo cheios de medo, e quando o negrume da noite chegava e o mar não amansava, as nossas mães não descansavam enquanto o pai não voltava a casa para a ceia. Que tempos medonhos, aqueles!...

Passada a borrasca e como se nada tivesse acontecido, voltávamos a brincar na Lagoa com barquinhos de madeira e velas de papel, e a remar na taxinha da “Rosa Maria”, sempre com o olho à espreita do cabo-de-mar e das nossas mães que, com um vime, nos tocavam até a casa... Outros tempos!...

Amigo Henrique:

Construímos a vida com memórias, e as de infância perduram intactas.

Com o passar dos anos, constato que os rapazes e raparigas do nosso tempo de escola, partiram quase todos para a América e Canadá, alguns para o Faial e outras ilhas, e muito poucos para o continente.

A ilha onde nascemos era o farol dos nossos sonhos que tu e outros realizaram longe, muito longe...

Em pequenos, vivíamos a olhar o horizonte e os navios que passavam. Outros fundeavam na baía, com a montanha em fundo. Levavam poucos passageiros, transportavam gado, queijo e manteiga para Lisboa, e conservas de atum para os Estados Unidos. Chegavam e partiam, e nós, sempre ali, com vontade de partir...

Quando crianças, apreciámos a riqueza da América nas sacas de roupa e nos dólares escondidos por entre fotografias de casas e carros que nunca viramos na vida. Esse foi o maior apelo para muitas famílias emigrarem e livrarem os filhos das guerras de África. Depois, a saudade silenciou-se nos trabalhos esforçados mas bem pagos que ajudaram a amealhar pequenas fortunas.

Ao fim de décadas, eis-nos de novo, de volta à terra onde nascemos.

Encontrámo-nos, Henrique, há poucos anos, na festa de Lourdes. Já tinhas cabelo grisalho, e estavas debruçado na proa do bote do Mestre Caiador – o Liberdade. Recordavas estórias de quando teu pai arriava à baleia, no Maria Armanda. Os rapazes mais novos, não te davam ouvidos, mas eu bebia os teus relatos e modo de dizer, igual às acesas discussões tidas na banqueta de pedra da casa dos Botes da Lagoa de baixo. Esses relatos construíram as epopeias dos nossos heróis - mestres e trancadores - que sempre admirámos pela sua valentia. Já partiram quase todos e os que restam, já não têm ninguém para discutir as tropelias e artimanhas que se faziam nesses mares para matar baleias e alimentar famílias inteiras necessitadas de pão e de tudo para sobreviverem.

Têm andado por aqui, no verão, muitos rapazes e raparigas do nosso tempo de escola. Estão, certamente reformados, e não deixam os filhos e os netos para regressar, definitivamente, aqui. Muito menos pelo Natal, de que têm má memória, em comparação com a abundância, luz e cor que encontraram em terras de abundância. Entendo-os, perfeitamente, amigo Henrique.

Se Deus quiser, voltaremos a encontrar-nos no próximo verão.

Desejo-te, de todo o coração, A happy new year! e que Deus nos acompanhe a todos na caminhada que nos resta.

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